{"title":"阴。1967年第200号法令规则对市政当局的适用:投标对象","authors":"Celso de Mello","doi":"10.48143/rdai/09.cabm","DOIUrl":null,"url":null,"abstract":"Consulta: \nUma Prefeitura Municipal consulta-nos se é possível contratar, sem licitação, determinada revista para realização de reportagem que dê divulgação ao município, suas obras públicas, suas possibilidades econômicas e seu desenvolvimento. \nAduz, ainda, que a revista realizou, recentemente, no município, cobertura jornalística das solenidades presididas pelo Governador, relativas à atuação estadual em benefício da região. Acrescenta que, por já ter travado conhecimento com o município, suas obras e perspectivas, dispõe-se a cobrar pela reportagem preços inferiores aos de sua tabela oficial de preços, com redução significativa. Informa, afinal, que o município não tem legislação própria sobre licitação. \nParecer \nA resposta à consulta supõe o exame de três questões: \n1. Legislação aplicável às aquisições de bens, realização de obras e serviços pretendidos pelos municípios; \n2. Características do objeto da licitação; \n3. Casos de dispensa de licitação. \nFixados estes pontos, será, então, possível oferecer uma resposta devidamente fundamentada ao caso “sub consulta”. \n I – A legislação aplicável aos municípios para aquisições de bens, realização de obras e serviços, em princípio e como regra, é aquela estabelecida pela Câmara Municipal. Isto, como resultado do art. 16 da Carta Constitucional brasileira que assegura a autonomia do município, atribuindo-lhe administração própria no que concerne ao seu peculiar interesse (art. 16, n. II). \nRequisito indispensável para a autoadministração e organização dos serviços locais (art. 16, n. II, “b”) é a fixação das normas através das quais o município se proverá dos bens e serviços necessários ao desempenho de sua função. Quem dá os fins não pode negar os meios, já observa, com lógica irrefutável, Rui Barbosa. \nO município é entidade autônoma e não autarquia. Isto significa que legisla para si; não se reduz – ao contrário da autarquia – a cumprir leis feitas por outras pessoas jurídicas. \nTanto quanto a própria União e os Estados federados, o município tem sua origem jurídica no diploma constitucional, e suas prerrogativas derivam, do mesmo modo que as daqueles, da Lei Magna. Por isso, não é subordinado a quem quer que seja. O fato de integrar o Estado não o coloca em posição inferior, assim como o fato do Estado integrarem a Federação não os torna subalternos em relação àquela. No âmbito de suas competências, uns e outros são autônomos. Suas posições estão juridicamente definidas no próprio texto constitucional. Daí se segue que nenhuma lei pode amesquinhar-lhes a posição, redefinindo seus poderes, sob pena de ser afrontosa à Carta básica do País e, em face disto, nula de pleno direito. \nO município é, como os Estados e a Federação brasileira, pessoa jurídica pública de capacidade política; portanto, peça estrutura do sistema, dotada de poderes juridicamente tão sobranceiros quanto os dos Estados e os da União, embora circunscritos em limites e esferas de ação diversos daqueles. A tríplice ordem de entidades políticas, no Brasil, tem campos de atribuições específicos, privativos e, por tal razão, insusceptíveis de recíprocas penetrações. \nÉ verdade que a Lei Orgânica dos Municípios do Estado de São Paulo estabeleceu limites para licitação para obras, serviços e fornecimentos aos municípios, observada a legislação federal pertinente (art. 53), mas não se sabe que outorgou procuração ao Estado para decidir a respeito. \nDa Lei Magna brasileira – única definidora da competência, dos poderes da União, Estados e municípios – consta, apenas, como prerrogativa estatual, relativa aos seus municípios, estabelecer, através de lei complementar, os requisitos mínimos de população, renda e forma de consulta às populações locais para criação de municipalidades (art. 15 da Constituição Federal (LGL\\1988\\3)) e intervir neles exclusivamente se forem impontuais no pagamento de empréstimo garantido pelo Estado ou se deixarem de pagar, por dois anos consecutivos, dívida fundada ou se não prestarem contas a que estejam obrigados na forma da lei estadual (art. 16, §3º, da Carta federal). \nJá se vê o quanto foi audaciosa a Lei Orgânica, ao interferir no que não podia; ao irrogar-se prerrogativas que ninguém lhas deu. Donde, ser inconstitucional, nula de pleno direito, írrita, a disposição do art. 53 da Lei n. .842 de 19 de setembro de 1967 (Lei Orgânica dos Municípios). Segundo alguns, a legislação a vigorar nos municípios, sobre licitações, é o decreto-lei n. 200, de 27 de fevereiro de 1967, o qual, segundo sua própria ementa, “dispõe sobre a organização da Administração federal, estabelece diretrizes para a reforma administrativa e dá outras providências”. \nNem seria necessário invocar a clareza da ementa mencionada, que deixa explícito tratar o decreto-lei citado de normas relativas aos serviços e atividades da União. A simples leitura do diploma referido revelaria, de imediato, que nunca teve como objeto – impossível, por inconstitucional – estabelecer ditames obrigatórios para municípios ou Estados. \nSem embargo, tem sido sustentada a imperatividade dos art. 125 a 144 – que tratam da licitação – para Estados e municípios, fundando-se em que seriam “normas gerias de direito financeiro”, de competência, pois, da União, com base no permissivo do art. 8º, n. XVII, “c”, da Carta brasileira. Esdrúxulo entendimento! As regras sobre licitação, previstas no decreto-lei n. 200, nem são normas gerais, nem são de direito financeiro! Em nosso entender, tal se percebe em análise aligeirada. \nCom efeito, regras que minuciosamente dispõem sobre modalidade de licitações, valores determinantes da exclusão dela ou da adoção de suas diferentes formas, casos de dispensa e processos de realiza-la, são gerais unicamente no sentido que toda lei o é. \nSe as disposições em tela forem havidas como normas gerais – a despeito de sua escrupulosa minúcia, que nem campo deixa para regulamentação – forçoso será convir que inexiste a distinção constitucional entre “normas gerais” e normas a que se não atribui tal caráter. Se forem havida como normas gerais – repita-se – converter-se-ia em tal toda e qualquer lei e o legislador constitucional, ao firmar o discrímen em apreço, tê-lo-ia feito por maliciosa pilhéria. \nMas, sobre não serem, evidentemente, normais geais, também não são de direito financeiro; são de direito administrativo estrito. \nPara entende-las como de direito financeiro seria necessário fundar-se em que esta caráter lhes advém da simples circunstância de regularem um procedimento relacionado com a despesa pública – já que o direito financeiro diz com os aspectos formais da receita, da gestão e da despesa. \nOcorre que a licitação, antes de ser procedimento preliminar à despesa, é procedimento preliminar de um contrato, do qual advirá a despesa. Com maior razão se entenderia – se acolhido o entendimento profligado – serem as normas reguladoras do contrato administrativo, normas de direito financeiro, ou, dito e modo mais chocante, ser o contrato administrativo um contrato financeiro (!). \nO concurso para preenchimento de cargo público também é um procedimento preliminar à despesa, que ocorrerá com o pagamento dos vencimentos do funcionário admitido. Nem por isso alguém se lembrou de relacionar sua disciplina com o direito financeiro. \nAdotado o mesmo fundamento, que levou alguns a consolidarem a licitação matéria de direito financeiro, ter-se-á que incluir nesta qualificação a maior parte do direito administrativo, o qual seria engolido pela boca voraz das normas gerais de direito financeiro. \nO próprio fato do Estado de São Paulo haver adotado as disposições do decreto-lei n. 200, relativas à licitação – pelo singular processo de mandar aplica-las por decreto (!) – demonstra, ao contrário do que supõem os partidários da tese que rejeitamos, que não foram consideradas, entre nós, como regras expedidas com a força própria das normas gerais de direito financeiro. \nSe o Governo estadual as houvesse considerado assim, não necessitaria emprestar-lhes vigor no âmbito do Estado, eis que, por virtude própria já seriam aplicáveis, haurindo sua imperatividade no diploma constitucional. Contrariamente ao que tem sido sustentado por alguns, a adoção dos artigos relativos à licitação contemplados no decreto-lei n. 200 pelo Executivo estadual, longe de demonstrar sua obrigatoriedade em âmbito nacional, comprova a adoção de inteligência oposta. Com efeito, se normas gerais de direito financeiro fossem, receberiam sua impositividade do art. 8º, n. XVII, “c”, da Constituição brasileira, não o decreto estadual. Parece evidente que a lei suprema do País tem mais força que um decreto do Governo. O decreto, para justificar-se salvo delirante e aberratória pretensão jurídica, necessita estar escorado no pressuposto de que a norma em apreço não teria, por virtude constitucional, o poder de atingir o Estado. \nO que o Executivo paulista pretendeu fazer – conquanto por meio inidôneo (decreto) – foi se utilizar, no âmbito interno, do instituto conhecido no direito internacional privado como remissão, modalidade de conversão. No caso, incorporar ao direito estadual uma norma federal. \nCumpre lembrar que a lei federal n. 5.456, de 20 de junho de 1968, mandou aplicar a Estados e municípios as normas de licitação do decreto-lei n. 200. Trata-se, na conformidade das observações até agora feitas, de investida juridicamente inaceitável na esfera privativa de competência destes. A lei em questão, pelos motivos expostos ao longo das páginas precedentes, é nula, gravada de irremissível inconstitucionalidade. Perante o Direito chegar a ser um ato ridículo. Cabe, entretanto, questionar: na ausência de normas municipais que tratem da matéria, como resolver a questão? \nSem dúvida o princípio da licitação é acolho no direito brasileiro, como de resto o é, em todos os países civilizados. É norma de moralidade administrativa, valor constitucionalmente consagrado no art. 84 da Carta Federal. 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Legislação aplicável às aquisições de bens, realização de obras e serviços pretendidos pelos municípios; \\n2. Características do objeto da licitação; \\n3. Casos de dispensa de licitação. \\nFixados estes pontos, será, então, possível oferecer uma resposta devidamente fundamentada ao caso “sub consulta”. \\n I – A legislação aplicável aos municípios para aquisições de bens, realização de obras e serviços, em princípio e como regra, é aquela estabelecida pela Câmara Municipal. Isto, como resultado do art. 16 da Carta Constitucional brasileira que assegura a autonomia do município, atribuindo-lhe administração própria no que concerne ao seu peculiar interesse (art. 16, n. II). \\nRequisito indispensável para a autoadministração e organização dos serviços locais (art. 16, n. II, “b”) é a fixação das normas através das quais o município se proverá dos bens e serviços necessários ao desempenho de sua função. Quem dá os fins não pode negar os meios, já observa, com lógica irrefutável, Rui Barbosa. \\nO município é entidade autônoma e não autarquia. Isto significa que legisla para si; não se reduz – ao contrário da autarquia – a cumprir leis feitas por outras pessoas jurídicas. \\nTanto quanto a própria União e os Estados federados, o município tem sua origem jurídica no diploma constitucional, e suas prerrogativas derivam, do mesmo modo que as daqueles, da Lei Magna. Por isso, não é subordinado a quem quer que seja. O fato de integrar o Estado não o coloca em posição inferior, assim como o fato do Estado integrarem a Federação não os torna subalternos em relação àquela. No âmbito de suas competências, uns e outros são autônomos. Suas posições estão juridicamente definidas no próprio texto constitucional. Daí se segue que nenhuma lei pode amesquinhar-lhes a posição, redefinindo seus poderes, sob pena de ser afrontosa à Carta básica do País e, em face disto, nula de pleno direito. \\nO município é, como os Estados e a Federação brasileira, pessoa jurídica pública de capacidade política; portanto, peça estrutura do sistema, dotada de poderes juridicamente tão sobranceiros quanto os dos Estados e os da União, embora circunscritos em limites e esferas de ação diversos daqueles. A tríplice ordem de entidades políticas, no Brasil, tem campos de atribuições específicos, privativos e, por tal razão, insusceptíveis de recíprocas penetrações. \\nÉ verdade que a Lei Orgânica dos Municípios do Estado de São Paulo estabeleceu limites para licitação para obras, serviços e fornecimentos aos municípios, observada a legislação federal pertinente (art. 53), mas não se sabe que outorgou procuração ao Estado para decidir a respeito. \\nDa Lei Magna brasileira – única definidora da competência, dos poderes da União, Estados e municípios – consta, apenas, como prerrogativa estatual, relativa aos seus municípios, estabelecer, através de lei complementar, os requisitos mínimos de população, renda e forma de consulta às populações locais para criação de municipalidades (art. 15 da Constituição Federal (LGL\\\\1988\\\\3)) e intervir neles exclusivamente se forem impontuais no pagamento de empréstimo garantido pelo Estado ou se deixarem de pagar, por dois anos consecutivos, dívida fundada ou se não prestarem contas a que estejam obrigados na forma da lei estadual (art. 16, §3º, da Carta federal). \\nJá se vê o quanto foi audaciosa a Lei Orgânica, ao interferir no que não podia; ao irrogar-se prerrogativas que ninguém lhas deu. Donde, ser inconstitucional, nula de pleno direito, írrita, a disposição do art. 53 da Lei n. .842 de 19 de setembro de 1967 (Lei Orgânica dos Municípios). Segundo alguns, a legislação a vigorar nos municípios, sobre licitações, é o decreto-lei n. 200, de 27 de fevereiro de 1967, o qual, segundo sua própria ementa, “dispõe sobre a organização da Administração federal, estabelece diretrizes para a reforma administrativa e dá outras providências”. \\nNem seria necessário invocar a clareza da ementa mencionada, que deixa explícito tratar o decreto-lei citado de normas relativas aos serviços e atividades da União. A simples leitura do diploma referido revelaria, de imediato, que nunca teve como objeto – impossível, por inconstitucional – estabelecer ditames obrigatórios para municípios ou Estados. \\nSem embargo, tem sido sustentada a imperatividade dos art. 125 a 144 – que tratam da licitação – para Estados e municípios, fundando-se em que seriam “normas gerias de direito financeiro”, de competência, pois, da União, com base no permissivo do art. 8º, n. XVII, “c”, da Carta brasileira. Esdrúxulo entendimento! As regras sobre licitação, previstas no decreto-lei n. 200, nem são normas gerais, nem são de direito financeiro! Em nosso entender, tal se percebe em análise aligeirada. \\nCom efeito, regras que minuciosamente dispõem sobre modalidade de licitações, valores determinantes da exclusão dela ou da adoção de suas diferentes formas, casos de dispensa e processos de realiza-la, são gerais unicamente no sentido que toda lei o é. \\nSe as disposições em tela forem havidas como normas gerais – a despeito de sua escrupulosa minúcia, que nem campo deixa para regulamentação – forçoso será convir que inexiste a distinção constitucional entre “normas gerais” e normas a que se não atribui tal caráter. Se forem havida como normas gerais – repita-se – converter-se-ia em tal toda e qualquer lei e o legislador constitucional, ao firmar o discrímen em apreço, tê-lo-ia feito por maliciosa pilhéria. \\nMas, sobre não serem, evidentemente, normais geais, também não são de direito financeiro; são de direito administrativo estrito. \\nPara entende-las como de direito financeiro seria necessário fundar-se em que esta caráter lhes advém da simples circunstância de regularem um procedimento relacionado com a despesa pública – já que o direito financeiro diz com os aspectos formais da receita, da gestão e da despesa. \\nOcorre que a licitação, antes de ser procedimento preliminar à despesa, é procedimento preliminar de um contrato, do qual advirá a despesa. Com maior razão se entenderia – se acolhido o entendimento profligado – serem as normas reguladoras do contrato administrativo, normas de direito financeiro, ou, dito e modo mais chocante, ser o contrato administrativo um contrato financeiro (!). \\nO concurso para preenchimento de cargo público também é um procedimento preliminar à despesa, que ocorrerá com o pagamento dos vencimentos do funcionário admitido. Nem por isso alguém se lembrou de relacionar sua disciplina com o direito financeiro. \\nAdotado o mesmo fundamento, que levou alguns a consolidarem a licitação matéria de direito financeiro, ter-se-á que incluir nesta qualificação a maior parte do direito administrativo, o qual seria engolido pela boca voraz das normas gerais de direito financeiro. \\nO próprio fato do Estado de São Paulo haver adotado as disposições do decreto-lei n. 200, relativas à licitação – pelo singular processo de mandar aplica-las por decreto (!) – demonstra, ao contrário do que supõem os partidários da tese que rejeitamos, que não foram consideradas, entre nós, como regras expedidas com a força própria das normas gerais de direito financeiro. \\nSe o Governo estadual as houvesse considerado assim, não necessitaria emprestar-lhes vigor no âmbito do Estado, eis que, por virtude própria já seriam aplicáveis, haurindo sua imperatividade no diploma constitucional. Contrariamente ao que tem sido sustentado por alguns, a adoção dos artigos relativos à licitação contemplados no decreto-lei n. 200 pelo Executivo estadual, longe de demonstrar sua obrigatoriedade em âmbito nacional, comprova a adoção de inteligência oposta. Com efeito, se normas gerais de direito financeiro fossem, receberiam sua impositividade do art. 8º, n. XVII, “c”, da Constituição brasileira, não o decreto estadual. Parece evidente que a lei suprema do País tem mais força que um decreto do Governo. O decreto, para justificar-se salvo delirante e aberratória pretensão jurídica, necessita estar escorado no pressuposto de que a norma em apreço não teria, por virtude constitucional, o poder de atingir o Estado. \\nO que o Executivo paulista pretendeu fazer – conquanto por meio inidôneo (decreto) – foi se utilizar, no âmbito interno, do instituto conhecido no direito internacional privado como remissão, modalidade de conversão. No caso, incorporar ao direito estadual uma norma federal. \\nCumpre lembrar que a lei federal n. 5.456, de 20 de junho de 1968, mandou aplicar a Estados e municípios as normas de licitação do decreto-lei n. 200. Trata-se, na conformidade das observações até agora feitas, de investida juridicamente inaceitável na esfera privativa de competência destes. A lei em questão, pelos motivos expostos ao longo das páginas precedentes, é nula, gravada de irremissível inconstitucionalidade. Perante o Direito chegar a ser um ato ridículo. Cabe, entretanto, questionar: na ausência de normas municipais que tratem da matéria, como resolver a questão? \\nSem dúvida o princípio da licitação é acolho no direito brasileiro, como de resto o é, em todos os países civilizados. É norma de moralidade administrativa, valor constitucionalmente consagrado no art. 84 da Carta Federal. 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Licitação. Aplicação de normas do Decreto-lei 200, de 1967, aos municípios: do objeto licitável
Consulta:
Uma Prefeitura Municipal consulta-nos se é possível contratar, sem licitação, determinada revista para realização de reportagem que dê divulgação ao município, suas obras públicas, suas possibilidades econômicas e seu desenvolvimento.
Aduz, ainda, que a revista realizou, recentemente, no município, cobertura jornalística das solenidades presididas pelo Governador, relativas à atuação estadual em benefício da região. Acrescenta que, por já ter travado conhecimento com o município, suas obras e perspectivas, dispõe-se a cobrar pela reportagem preços inferiores aos de sua tabela oficial de preços, com redução significativa. Informa, afinal, que o município não tem legislação própria sobre licitação.
Parecer
A resposta à consulta supõe o exame de três questões:
1. Legislação aplicável às aquisições de bens, realização de obras e serviços pretendidos pelos municípios;
2. Características do objeto da licitação;
3. Casos de dispensa de licitação.
Fixados estes pontos, será, então, possível oferecer uma resposta devidamente fundamentada ao caso “sub consulta”.
I – A legislação aplicável aos municípios para aquisições de bens, realização de obras e serviços, em princípio e como regra, é aquela estabelecida pela Câmara Municipal. Isto, como resultado do art. 16 da Carta Constitucional brasileira que assegura a autonomia do município, atribuindo-lhe administração própria no que concerne ao seu peculiar interesse (art. 16, n. II).
Requisito indispensável para a autoadministração e organização dos serviços locais (art. 16, n. II, “b”) é a fixação das normas através das quais o município se proverá dos bens e serviços necessários ao desempenho de sua função. Quem dá os fins não pode negar os meios, já observa, com lógica irrefutável, Rui Barbosa.
O município é entidade autônoma e não autarquia. Isto significa que legisla para si; não se reduz – ao contrário da autarquia – a cumprir leis feitas por outras pessoas jurídicas.
Tanto quanto a própria União e os Estados federados, o município tem sua origem jurídica no diploma constitucional, e suas prerrogativas derivam, do mesmo modo que as daqueles, da Lei Magna. Por isso, não é subordinado a quem quer que seja. O fato de integrar o Estado não o coloca em posição inferior, assim como o fato do Estado integrarem a Federação não os torna subalternos em relação àquela. No âmbito de suas competências, uns e outros são autônomos. Suas posições estão juridicamente definidas no próprio texto constitucional. Daí se segue que nenhuma lei pode amesquinhar-lhes a posição, redefinindo seus poderes, sob pena de ser afrontosa à Carta básica do País e, em face disto, nula de pleno direito.
O município é, como os Estados e a Federação brasileira, pessoa jurídica pública de capacidade política; portanto, peça estrutura do sistema, dotada de poderes juridicamente tão sobranceiros quanto os dos Estados e os da União, embora circunscritos em limites e esferas de ação diversos daqueles. A tríplice ordem de entidades políticas, no Brasil, tem campos de atribuições específicos, privativos e, por tal razão, insusceptíveis de recíprocas penetrações.
É verdade que a Lei Orgânica dos Municípios do Estado de São Paulo estabeleceu limites para licitação para obras, serviços e fornecimentos aos municípios, observada a legislação federal pertinente (art. 53), mas não se sabe que outorgou procuração ao Estado para decidir a respeito.
Da Lei Magna brasileira – única definidora da competência, dos poderes da União, Estados e municípios – consta, apenas, como prerrogativa estatual, relativa aos seus municípios, estabelecer, através de lei complementar, os requisitos mínimos de população, renda e forma de consulta às populações locais para criação de municipalidades (art. 15 da Constituição Federal (LGL\1988\3)) e intervir neles exclusivamente se forem impontuais no pagamento de empréstimo garantido pelo Estado ou se deixarem de pagar, por dois anos consecutivos, dívida fundada ou se não prestarem contas a que estejam obrigados na forma da lei estadual (art. 16, §3º, da Carta federal).
Já se vê o quanto foi audaciosa a Lei Orgânica, ao interferir no que não podia; ao irrogar-se prerrogativas que ninguém lhas deu. Donde, ser inconstitucional, nula de pleno direito, írrita, a disposição do art. 53 da Lei n. .842 de 19 de setembro de 1967 (Lei Orgânica dos Municípios). Segundo alguns, a legislação a vigorar nos municípios, sobre licitações, é o decreto-lei n. 200, de 27 de fevereiro de 1967, o qual, segundo sua própria ementa, “dispõe sobre a organização da Administração federal, estabelece diretrizes para a reforma administrativa e dá outras providências”.
Nem seria necessário invocar a clareza da ementa mencionada, que deixa explícito tratar o decreto-lei citado de normas relativas aos serviços e atividades da União. A simples leitura do diploma referido revelaria, de imediato, que nunca teve como objeto – impossível, por inconstitucional – estabelecer ditames obrigatórios para municípios ou Estados.
Sem embargo, tem sido sustentada a imperatividade dos art. 125 a 144 – que tratam da licitação – para Estados e municípios, fundando-se em que seriam “normas gerias de direito financeiro”, de competência, pois, da União, com base no permissivo do art. 8º, n. XVII, “c”, da Carta brasileira. Esdrúxulo entendimento! As regras sobre licitação, previstas no decreto-lei n. 200, nem são normas gerais, nem são de direito financeiro! Em nosso entender, tal se percebe em análise aligeirada.
Com efeito, regras que minuciosamente dispõem sobre modalidade de licitações, valores determinantes da exclusão dela ou da adoção de suas diferentes formas, casos de dispensa e processos de realiza-la, são gerais unicamente no sentido que toda lei o é.
Se as disposições em tela forem havidas como normas gerais – a despeito de sua escrupulosa minúcia, que nem campo deixa para regulamentação – forçoso será convir que inexiste a distinção constitucional entre “normas gerais” e normas a que se não atribui tal caráter. Se forem havida como normas gerais – repita-se – converter-se-ia em tal toda e qualquer lei e o legislador constitucional, ao firmar o discrímen em apreço, tê-lo-ia feito por maliciosa pilhéria.
Mas, sobre não serem, evidentemente, normais geais, também não são de direito financeiro; são de direito administrativo estrito.
Para entende-las como de direito financeiro seria necessário fundar-se em que esta caráter lhes advém da simples circunstância de regularem um procedimento relacionado com a despesa pública – já que o direito financeiro diz com os aspectos formais da receita, da gestão e da despesa.
Ocorre que a licitação, antes de ser procedimento preliminar à despesa, é procedimento preliminar de um contrato, do qual advirá a despesa. Com maior razão se entenderia – se acolhido o entendimento profligado – serem as normas reguladoras do contrato administrativo, normas de direito financeiro, ou, dito e modo mais chocante, ser o contrato administrativo um contrato financeiro (!).
O concurso para preenchimento de cargo público também é um procedimento preliminar à despesa, que ocorrerá com o pagamento dos vencimentos do funcionário admitido. Nem por isso alguém se lembrou de relacionar sua disciplina com o direito financeiro.
Adotado o mesmo fundamento, que levou alguns a consolidarem a licitação matéria de direito financeiro, ter-se-á que incluir nesta qualificação a maior parte do direito administrativo, o qual seria engolido pela boca voraz das normas gerais de direito financeiro.
O próprio fato do Estado de São Paulo haver adotado as disposições do decreto-lei n. 200, relativas à licitação – pelo singular processo de mandar aplica-las por decreto (!) – demonstra, ao contrário do que supõem os partidários da tese que rejeitamos, que não foram consideradas, entre nós, como regras expedidas com a força própria das normas gerais de direito financeiro.
Se o Governo estadual as houvesse considerado assim, não necessitaria emprestar-lhes vigor no âmbito do Estado, eis que, por virtude própria já seriam aplicáveis, haurindo sua imperatividade no diploma constitucional. Contrariamente ao que tem sido sustentado por alguns, a adoção dos artigos relativos à licitação contemplados no decreto-lei n. 200 pelo Executivo estadual, longe de demonstrar sua obrigatoriedade em âmbito nacional, comprova a adoção de inteligência oposta. Com efeito, se normas gerais de direito financeiro fossem, receberiam sua impositividade do art. 8º, n. XVII, “c”, da Constituição brasileira, não o decreto estadual. Parece evidente que a lei suprema do País tem mais força que um decreto do Governo. O decreto, para justificar-se salvo delirante e aberratória pretensão jurídica, necessita estar escorado no pressuposto de que a norma em apreço não teria, por virtude constitucional, o poder de atingir o Estado.
O que o Executivo paulista pretendeu fazer – conquanto por meio inidôneo (decreto) – foi se utilizar, no âmbito interno, do instituto conhecido no direito internacional privado como remissão, modalidade de conversão. No caso, incorporar ao direito estadual uma norma federal.
Cumpre lembrar que a lei federal n. 5.456, de 20 de junho de 1968, mandou aplicar a Estados e municípios as normas de licitação do decreto-lei n. 200. Trata-se, na conformidade das observações até agora feitas, de investida juridicamente inaceitável na esfera privativa de competência destes. A lei em questão, pelos motivos expostos ao longo das páginas precedentes, é nula, gravada de irremissível inconstitucionalidade. Perante o Direito chegar a ser um ato ridículo. Cabe, entretanto, questionar: na ausência de normas municipais que tratem da matéria, como resolver a questão?
Sem dúvida o princípio da licitação é acolho no direito brasileiro, como de resto o é, em todos os países civilizados. É norma de moralidade administrativa, valor constitucionalmente consagrado no art. 84 da Carta Federal. Cumpre saber quais a regras aplicáveis à licitação – que